Tinha cabelos rebeldes.
Mordia o canto direito do lábio inferior deixando à mostra uma fileira de dentes. O molar esquerdo tinha uma pontinha quebrada, herança dos fingimentos pueris: voava num balanço ou mergulhava em uma pocinha d’água.
Nos tempos em que você ainda emitia uma luz desregulada e amarela como ouro roubado. Meu ouro, certamente.
Como podiam seus cabelos ser mais rebeldes que eu inteiro? Mesmo quando chacoalhava meu corpo daquele jeito que você gostava, eu continuava pequeno perto dos longos fios que se enrolavam, moldados propriamente para meus dedos nem tão longos assim.
E íamos, íamos embora como se fosse fácil comprar um sonho. Na Alemanha vimos o gelo derreter, e na França comemos carne mesmo que você não gostasse dessa indústria. Em Londres me joguei do Big Ben só para te provar que eu era seu. Você riu e falou que era pouco. Você sempre queria mais, você sempre queria o Everest. E eu fui, de olhos fechados, enquanto você dormia, já que meu orgulho não deixaria que tal fato fosse gravado na sua memória tão esquecida.
Anos antes, você poderia derreter a neve. Quando te conheci, você era quase um sol. Um pouco mais que isso... Um som meio destonado, uma estrela brilhante demais, que acabava por cegar qualquer um que te visse. E você sorria, como quem não liga, e dizia para si mesmo que era a nota mais bonita que poderia haver. Ah, mas um sol sustenido? Você era estranho, era mais do que o necessário, sobrava. Tinha cabelos penteados demais, longos demais, e um sorriso irônico demais.
Aí se despiu desse calor que me fazia suar. Lá. Lá. Lá.
E enfiava suas mãos finas em luvas grossas, gordinhas assim. Jogava o cabelo para frente para não ter frio nas orelhas e sorria enquanto mordia os lábios (como conseguia?). Mudou tanto num semitom. E aí sentava do meu lado, em cima de mim, e colocava as pernas por cima das minhas. E ficava exatamente sete segundos em silêncio, só respirando minhas palavras, antes de apontar para um cortezinho enfeitado por sangue, pequeno. Fazia biquinho e dizia:
― Cuide, amor, que dói.
E eu sorria por dentro, sem por um momento tirar a expressão de contrariado do rosto. Tirava de ti o sangue com o dedo indicador e depois me colava em você com um band-aid exageradamente infantil.
― Super Homem? ―Você torcia os lábios e os olhos ao mesmo tempo. ― Você sabe que eu gosto mais do Homem Aranha!
Eu novamente assumia o papel de ranzinzo. Dizia que querendo ou não, você era um super homem, e não uma aranha dessas feias que a gente mata com o chinelo. Você ficava sem entender, refletia sobre os prós e contras de saber voar, ser intocável e pegar uma bala no ar. Você ainda preferia soltar teia, tenho certeza que era assim. Algum dia você vai ver o quanto que é bom ter visão de raio laser.
E nem com esses olhos privilegiados entrava na sua cabeça que seu som é o mais bonito do piano.
Depois você fazia café e tomava sozinho, aos goles, aos risos. Sabia que eu não gostava nem do cheiro, mesmo assim me oferecia. Perguntava aonde iríamos amanhã, querendo que eu dissesse que seria à Rússia. Eu falava outro nome, só para revidar o golpe do café. Você sorria mesmo assim e ia dormir. E adormecia! Depois de tomar café. Sempre assim. Com os cabelos em cima do nariz.
Eu sentava do seu lado, acendia a luz (você nunca acordava) e lia seu diário, procurando alguma evidência da minha presença na sua vida. Você narrava com perfeição nossas expedições a tantos países que eu nunca tinha imaginado ir (e nunca fui). E sempre tinha umpronome masculino que equivalia ao meu nome, embora eu nunca achasse.
Mas no rodapé, lá estava eu: “Ele continua cuidando de mim quando eu caio”. Sempre algo nesse gênero. E eu fechava os narizes e olhos e ouvidos e coração e tudo e lembrava claramente da sua perna na minha e sua voz contra a minha, me dizendo que doía.